31/03/2008

Arte que se pinta: "A Cabeça" de Santa-Rita Pintor


Escolho hoje esta imagem, simplesmente porque sim. Porque, é uma das imagens que me prende a atenção, seja para apreciar como um todo, seja para gastar tempo perseguindo com o olhar as linhas que a perfazem. Sobretudo, é necessário falar, falar vezes sem conta na geração que marcou o início do séc. XX em Portugal. Portugal Futurista, Orpheu, Modernismo, Futurismo... época fulgurante do pensamento, que vale a pena revisitar.



"Guilherme de Santa-Rita (1889-1918), para muitos o introdutor do futurismo em Portugal – o mentor ausente e secreto – é sem dúvida um personagem misterioso e ao mesmo tempo fascinante; companheiro de Amadeu em Paris viria a ser «lançado» pelo Portugal Futurista (1) que de forma verdadeiramente sensacionalista o apresenta como o criador do futurismo em Portugal, publicando uma fotografia sua de grandes dimensões, assim bem como quatro pinturas e textos de Rebelo de Bettencourt - Santa-Rita Pintor , Raul Leal - L’abstractionisme futuriste e ainda de Almada Negreiros - Saltimbancos, dedicado exclusivamente a Santa-Rita.


Embora nestes textos, em especial nos de Rebelo de Bettencourt e Raul Leal, não apareça de forma precisa uma teoria definidora da nova corrente estética, quer seja o modernismo ou o futurismo, nem uma análise séria às pinturas de Santa-Rita, a verdade é que em termos altamente elogiosos e encorajantes se diz que Santa-Rita não se limita a reproduzir fotograficamente os objectos, mas antes a sua interpretação emocional e filosófica – tentativa de tradução da «natureza íntima das coisas». Entretanto, nos nossos dias, pouco ou nada se tem acrescentado a esses escritos do Portugal Futurista e estranhamente, apareçem até pessoas a falar de Santa-Rita, quer de uma forma absolutamente gratuita, quer revelando completa cegueira para a análise do problema, criticando o carácter sensacionalista dos estudos sobre Santa-Rita, e realçando ainda, uma quase «menoridade» e falta de importância deste pintor; ora neste caso, parece-nos evidente que, se os textos escritos – na altura – no Portugal Futurista contêm um teor mais fulgurante do que em profundidade acerca da obra do pintor – são ainda assim testemunhos bem mais interessantes e «modernos» - pela sua genuinidade e transparência vanguardista da época – do que os efectuados pelos reputados críticos da nossa era!


Exemplo disto, é o facto de José Augusto França, no seu livro O Modernismo na Arte Portuguesa afirmar que: «...a falta de uma teoria própria é evidente, como a falta de reflexão crítica sobre o fenómeno apresentado, e também a falta de criação original, quer no domínio literário, quer no artístico...»; o que este excerto nos diz, ou pretende fazer crer, é que o movimento de Arte Moderna em Portugal, do qual o Portugal Futurista era a sua aglutinação – embrionária – possível, não existiu pura e simplesmente! E que dizer, perante os termos empregues pelo mesmo crítico ao referir-se a Santa-Rita, e à sua obra:


«...ultramonárquico e reaccionário, perdeu em 1912 a bolsa do Governo que o levara a Paris, onde não conseguiu entrar na École des Beaux-Arts...»


«...uma vida pautada por uma obsessiva dedicação tanto quanto por uma suspeita “fumisterie”...»


e ainda:
«...de qualquer modo, muitos anos depois, Almada Negreiros considerá-lo-ia “um dos mais extraordinários espíritos que conheço”, e como tal, ou em tal suposição lendária, Santa-Rita terá de ficar na história do modernismo nacional...»


Aqui, é notória a falta de recursos do crítico, que se vê confrontado com o conservadorismo e o embaraço perante o facto histórico e artístico; apenas por respeito às palavras de Almada Negreiros proferidas em 1965 este «Santa-Rita», embora não devesse – ficará na história da Arte Moderna Portuguesa!! Para culminar esta série estrondosa de equívocos, este crítico referir-se-à ao quadro de Santa-Rita – Orpheu dos Infernos - pintado quando o artista completava 14 anos de idade como aluno da Escola de Belas-Artes de Lisboa , nos seguintes termos:


«....a obra é um mero “canular” de estudante de Belas-Artes...»


É pois desta forma lapidar que o crítico trata a obra de Santa-Rita, como se se tratasse de um capricho gráfico avant la letre, ou de um devaneio de adolescente que desabrocha gracioso...sem mais! Na verdade o tema abordado por Santa-Rita neste quadro, talvez não agradasse muito a J. Augusto França, uma vez que, nas suas intencões compositivas e descritivas, o artista coloca Veloso Salgado – mestre “decadentista” da Escola de Belas-Artes num Inferno – no seu Inferno - que no fundo é uma visão apologética do Inferno dos ignorantes, e como tal nele se veêm retratados todos os ditos do Portugal de então. O que de verdade nos choca, visceralmente, nestas análises superficiais e (des)interessadas de alguns críticos e historiadores da Arte Portuguesa, é o miopismo, o academismo e a relutância em aceitar ou aderir despreconceituosamente à Arte Moderna – viva e latente. As lições dos pioneiros da Arte Moderna em Portugal, a revolução dos Impressionistas, a afirmação de Picasso e dos que se seguiram, deixam mossa nalguma crítica ensimesmada, impreparada, que não sabe como reagir perante estes fenómenos, nem mesmo com a habitual e indesfarçável hipocrisia. Não se acredita no que é português, e muito menos se o vanguardismo é nosso. Em Portugal é hábito rodearem-se as grandes figuras de uma aura fantasmática – pela sua mais que incrédula atitude ou fabricada incerteza , pela sua inconveniente intromissão, e pelos danos eventuais que possam causar aos padrões estabelecidos e aos espíritos padronizados. Assim aconteceu com Camões, com Nuno Gonçalves, com Santa-Rita, com tantas, tantas e extraordinárias almas, cujo pecado maior foi o de terem nascido neste quintal de terra junto ao mar; como Fernando Pessoa ....... – só que Pessoa, já adivinhando toda esta míope e obtusa alameda ficcionista, alicerçada pela intriga social e pela competição cultural, criou a estrutura criativa dos seus heterónimos (através da sua fenomenal encenação poético-filosófica), desenvolvidos numa desmultiplicação de personalidades ímpares; Pessoa fez a vontade a quantos necessitavam de uma teia artística coerente e nacionalista, mas ultrapassando todas as fronteiras da civilização a que pertencia, veja-se o exemplo do seu «Ultimatun» ou a «Ode Triunfal» ou ainda a sua intervenção «cirúrgica anti-cristã». Jogou, intrigou, a todos deitando por terra, humilhando reflexivamente as castas conservadoras da (in)cultura portuguesa.


Acrescentemos que neste caso, nunca o poema de Almada – A Cena do ódio – deixou de ser actual, servindo hoje como barómetro da incompreensão total do meio, em relação aos jovens criadores, aos criadores em geral. E Santa-Rita? Rebelo de Bettencourt elucida-nos: «...Santa-Rita pintor tinha a obcessão da originalidade – Ah! Meu caro amigo, você não calcula como a originalidade me preocupa, é uma necessidade moral e física de ser outro eu. Eu queria falar como ninguém fala, com palavras que ninguém mais empregasse; vestir-me de outra maneira, viver numa casa como nunca existisse.»


Sublinhe-se esta definição ...a originalidade é uma necessidade moral e física de ser outro eu...Entre o SER EU de Almada, o EU NÃO SOU EU NEM SOU OUTRO de Sá Carneiro, e o SER OUTRO EU de Santa-Rita, o problema que realmente se põe é o da autenticidade conhecida e desenvolvida através da aventura poética. Neste domínio, Santa-Rita está muito próximo do SER OUTRO EU de Pessoa, cada qual utilizando os canais expressivos que corporizassem um caminho, culturalmente lúcido, rumo ao renascimento da arte em Portugal. A declaração de Santa-Rita não é «cabotina»; é a disposição para a acção, a intervenção, o convite ao abandono de todos os preconceitos. Não foi para contrariar Santa-Rita, pelo contrário, que Almada veio a dizer um dia: «...isto de ser moderno não é maneira de vestir, mas forma de ser e de sentir..». Para compreender esta geração, e o esforço que exerceu na sua época, é preciso passar para além da aparente contradição de Almada, à declaração de Santa-Rita, e aproximá-las num mesmo sentido.

Santa-Rita nunca expôs em Portugal. Através das revistas Orpheu 2 (2) e do Portugal Futurista, conhecem-se mais algumas obras, fotograficamente; dos dois quadros existentes, a um, inacabado, tem sido atribuida a data de 1910-1912, o que é plausível quando o comparamos com a colagem de 1912 reproduzida em Orpheu 2. Sendo assim, bem pode dizer-se que foi Santa-Rita o primeiro português a realizar um quadro moderno de interesse internacional; esse quadro introduz uma ironia que exige a maior atenção, uma vez que utiliza alguns processos gráficos do Cubismo picassiano, mas a sua dinamização interna situa-se para além da estética cubista, numa estruturação que se pode dizer alcança enquadramentos e raciocínios plásticos muito evoluidos.


Na sua pintura de 1913 – Orpheu dos Infernos – são já bem visíveis os índices corajosamente modernistas de Santa-Rita; nesta pintura figuram corpos, rostos, formas-cores e aeroplanos vogando na atmosfera dantesca em que está mergulhado Veloso Salgado; embora obra da sua adolescência, esta pintura revela inconfessavelmente os dotes admiráveis e a precocidade de Santa-Rita; é também de salientar a extraordinária capacidade deste artista para a composição e para o sistema já muito «adulto» com que joga as figuras, as formas e o todo do quadro. Pelo valor formal e pelo humor resultante da interpenetração de «objectos», seria talvez preferível não lhe chamar apenas futurista, mas reparar no que há já de cubismo sintético e de protodadaísmo, o que permite pedir para Santa-Rita um lugar no panorama internacional da vanguarda dessa época.


Santa-Rita interessara-se em Paris pelos futuristas e, tal como eles, talvez quisesse adoptar a linguagem cubista para a expressão da «simultaneidade dos estados de alma» mas, diferentemente deles, foi constante a sua admiração por Picasso, o que declarava incessantemente a Sá-Carneiro, chegando a desejar mais tarde que um dos números da revista Orpheu tivesse apenas reproduções de obras suas e do pintor espanhol, não esquecendo certamente o que neste há, mais do que em qualquer outro cubista, de sentido de humor e da caricatura.


No quadro Perspectiva dinâmica de um quarto de acordar de 1912, Santa-Rita opera uma grande transformação dos elementos e objectos, e por processos quase arquitecturais fragmenta, reune e «estica» este seu quarto numa síntese muito inteligente que está a pardos melhores momentos do cubismo sintético de Picasso e de Juan Gris. As formas são geometrizadas e «revolvidas» para então se incluírem elementos referenciais do mobiliário – cama, varões, janelas, mesas, etc.


É sem dúvida uma das melhores pinturas de Santa-Rita, e aquela em que demonstra um grande entendimento e aplicação da composição. A passagem do cubismo analítico ao cubismo sintético faz-se através da corporização do elemento fundamental da linguagem cubista: o plano. Essa passagem deu-se já nas obras de Braque e de Picasso, a partir do final de 1911, mantendo-se porém a rectilinearidade dos sinais gráficos.


Ora na Cabeça=Linha=Força. Complementarismo orgânico de 1913, as linhas são tensas e curvas, de modo que a forma não é «analizada» por planos, mas por representação de um entrecruzar de superfícies arqueadas, algumas das quais se alongam como fitas que na sua «torção» mostram a outra face. O sinal evidencia o corpo, humoristicamente; e, assim no aspecto mais puramente pictórico, reencontramos o que poderia ter ficado pretendido apenas intelectualmente.


No Estojo científico de uma cabeça + reflexos de ambiente + luz (sensibilidade mecânica) de 1914, as sugestões anunciadas têm uma leitura directa nos sinais gráficos da composição que se multiplicam e sobrepõem, em desenho e colagem. Santa-Rita utiliza aqui a técnica dos «papiers collés» tão utilizada pelos cubistas, mas ensaiando uma ampliação quer das técnicas de pintura, quer do conteúdo das mensagens propostas, uma vez que a introdução de objectos pré-fabricados de uso corrente estimula duplamente as formas, dando-lhes outras possibilidades dinâmicas de expressão e combinação, tendo em vista o aprofundamento das formas intutivas e a sua conjugação com as outras mais «racionais».


A produção pictórica de Santa-Rita revela-se a um tempo surpreendente e muito coerente na sua evolução, ultrapassando de quadro para quadro uma estética exclusivamente futurista de raíz italiana-francesa, para em progressão se vir a desvincular da descrição dos objectos e penetrar em linhas e cores nos terrenos das qualidades abstracto-compositivas próprias; sondando sempre com uma intenção declarada os aspectos da autonomização da cor e da concepção da composição, partindo da relação de tensões entre a cor, a linha e a arquitectura estrutural linear-geométrica.


Se se pode insistir num humor moderno que Santa-Rita terá sido o primeiro a entender e a viver, pouco preocupado com a «obra», é para melhor se poder sentir a agitação que provocou entre os seus contemporâneos e que talvez somente Amadeu de Souza Cardoso e Almada Negreiros tenham compreendido. Facto singular é o de Santa-Rita utilizar para títulos dos seus quadros longas frases descritivas segundo um código futurista pessoal, em que propõe sistemas diferentes de abordagem sensível, «radiográfica», litográfica e mecânica, ou ainda referir um «inter-seccionismo plástico» que nos faz lembrar certas experiências poéticas contemporâneas, de Pessoa e de Almada. O caso destes artistas portugueses do «século novo» é, além de tudo o mais que se possa dizer, muito importante pela voluntariedade heróica que a sua própria modernidade exigiu, pelo grande isolamento em que frequentemente se encontraram quando foram verdadeiramente inovadores, e pela incompreensão a que foram votados e que de certo modo ainda hoje persiste.


Fruto das relações entre os artistas e o mundo que os rodeia, poderemos encontrar atitudes comuns que ajudam a definir a entrada em cena desta geração «maldita»:um humor inescolar manifestado em caricaturas; um humor moderno, dadaísta quase; a obsessão pela originalidade. Almada Negreiros assumiu estas três atitudes, de um modo muito pessoal, e compreendendo muito bem a maneira como os outros as assumiram; Almada foi também o único pintor que verdadeiramente acompanhou os poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro; foi ele o único poeta que entendeu e estimulou a pintura de Santa-Rita e de Amadeu de Souza Cardoso.


«Adivinhão Latino» como também lhe chamavam, Santa-Rita pintor mais ou menos tocou em várias situações mentais do seu tempo, ou as adivinhou; a sua morte precoce com apenas 29 anos, como ele próprio, veio-lhe retirar a possibilidade de «adivinhar» mais coisas; para a Arte moderna portuguesa fica a recordação viva e o testemunho vibrante do primeiro grande modernista do nosso século. O fim do decénio aproximava-se – e dois dos principais artistas deste período Amadeu e Santa-Rita estavam mortos (1918). Almada partiria em breve para Paris. Fernando Pessoa constatava que, após o período fértil de 1914-1917, tudo enfraquecera e perdera sentido. Em fins de 1919, um jornalista anónimo dava conta da dispersão do grupo e do seu fim, ou do fim da sua escola. O sonho de Fernando Pessoa de um «super-homem», de certo modo havia acabado com a morte de Santa-Rita, continuando contudo, juntamente com Almada, a lutar contra a «mediocridade» e o sentido de inferioridade do português.


Para nós, fica a memória da dimensão do sonho deste grande vulto – e símbolo – de uma juventude que acreditava firmemente na criação pura e desvinculada do artificialismo da sociedade de consumo ou da opressão cultural, ou não, entre os homens. Que sería da Arte se ela não fosse, antes de tudo, a reacção, o protesto, a recusa, a variante, a proposta nova, a resposta individual de um homem vivo, particular e único? Se a obra de Arte, ao contrário da emergência do imprevisível que é, fosse um grupo «estatístico», seria possível planificar o sonho com antecedência... ora isso sabemos que é impossível. O tributo, as dores e desesperos de Santa-Rita, Amadeu, Almada, Viana e muitos outros que sofreram para ganhar o aplauso dos ignorantes e dos adormecidos, não foi esquecido."


João do Carmo 1994
in Modernismo . Futurismo Santa-Rita pintor
pp.24 a 36 E.S.B.A.L 1983 - 1994

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