04/03/2008

Arte que se lê: "Manifesto anti-Dantas" de Almada Negreiros


Este "Manifesto" lê-se nas escolas, nas aulas de Português. Enquanto novatos os "pim" refrescam-nos os ouvidos, desperta-nos, renova-nos a atenção. Na vida adulta, podemos ou não ser apreciadores do Modernismo, mas ninguém é indiferente ao caractér social deste texto. Oh pudessemos ser Negreiros e Almadas e andar por aí a distribuir manifestos em papel pardo.








O MANIFESTO ANTI-DANTAS DE ALMADA NEGREIROS




"1.Uma rápida informação biográfica e bibliográfica Almada Negreiros(1893-1970) é um dos três nomes cimeiros da geração de "Orpheu", ao lado de Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa... Ele pertence ao grupo de poetas e artistas que, reunidos em torno da revista "Orpheu", ditaram a modernização e o vanguardismo da Literatura Portuguesa no início do século XX. Sua obra, variada e multicultural, vai desde a poesia à ficção, ao teatro, ao ensaio, à crônica, prosa doutrinária e manifestos. Isto na literatura, porque sua presença na pintura é uma das mais significativas na história da arte em Portugal. Nos nn.149/150, a revista "Colóquio/Letras", da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, publicou um número especial dedicado a Almada Negreiros, um volume de 472 páginas. A publicação traz vários artigos e pesquisas de especialistas, portugueses e brasleiiros, que passará a ser uma das fontes críticas de consulta necessária para os leitores de Almada. A obra completa já tinha sido publicada pela Imprensa Nacional /Casa da Moeda de Lisboa.Recentemente, a Editora Nova Aguilar do Rio de Janeiro, lançou, também, no mercado, a "Obra completa" do escritor e poeta português, em edição papel Bíblia de 1123 páginas. Isto quer dizer que os estudiosos e pesquisadores de Literatura têm no âmbito do mundo de língua portuguesa, os dados indispensáveis para ler e estudar este interessante talento do modernismo e futurismo português.






2.O manifesto anti-Dantas(1916)




"Manifesto", em termos literários, é um documento de declaração pública, onde se enunciam intenções, críticas ou propósitos de ação cultural, política ou literária. O "Manifesto anti-Dantas" tornou-se famoso na obra de Almada Negreiros por várias razões: Primeiro porque é dirigido contra um escritor que dominava a literatura conservadora em Portugal e que mantinha o trono da dramaturgia de sucesso entre a classe dominante em Portugal. Júlio Dantas (1876-1962) é um médico, poeta, jornalista, dramaturgo e acadêmico prestigiado entre a intelectualidade portuguesa, figura de presença variada em vários gêneros literários, e uma figura controvertida. Em segundo lugar, pela violenta mordacidade e ironia com que Almada tenta desmontar o prestígio literário de Dantas. Em terceiro lugar, porque ao desmontar o prestígio literário de Dantas, Almada Negreiros está tentando desmontar também toda a arquitetura da literatura conservadora acoplada a Dentas e que dominava Portugal na altura em que apareceu a revista"Orpheu"(1915). Em quarto lugar, porque é uma peça onde aparecem ricos elementos de estudo não só do perfil do modernismo literário português, mas também da crítica literária em Portugal e sobretudo preciosos dados válidos para o estudo do gênero da ironia literária.






Intencionalidade anti-geração literária Dantas




Não é difícil pensar entretanto que o principal alvo do Manifesto era desconstruir o entusiasmo e a confiança da geração literária portuguesa que via em Júlio Dantas o modelo literário a seguir. Na verdade, o manifesto começa começa jogando pesado contra esta geração-Dantas: "Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio de indigentes, de indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração. Morra o Dantas, morra! Pim! Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente. Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco"...






Intencionalidade de desconstrução anti- Dantas




Desferidos alguns golpes mortais contra uma geração que admite Dantas como corifeu de escola, Almada preocupa-se, em seguida, em demolir a própria pessoa de Dantas. Almada debocha do escritor conservador, debocha de seu estilo, de seus conhecimentos gramaticais, e conclui que Dantas "saberá tudo menos escrever...que é a unica coisa que ele faz". Almada explica que Dantas consegue se insinuar na base da habilidade mas não tem qualidade poética: "O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas! Dantas é um habilidoso!"... São claras e agressivas as formas de demolição utilizadas contra o assim considerado líder literário dos conservadores portugueses: "O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever"[...]. Almada explica o sucesso do autor da "Ceia dos Cardeais" por fatores externos à literatura: andar sempre com a moda, com a política e com a opinião: "Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado e usar coco e olhos meigos"[...]. "O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum"[...]. "O Dantas é a vergonha da intelctualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental! E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!"[...] "O Dantas é o escárnio da consciência. Se o Dantas é português eu quero ser espanhol"[...]"E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada e que não sabe nada e que nem é inteligente nem decente nem zero!"... Uma das cargas de crítica mordaz feitas por Almada contra Júlio Dantas é sobre a peça que construiu em tormo da freira protagonista das Cartas Portuguesas, Soror Mariana Alcoforado, peça que julga uma peça de depravação.






Literatura, desconstrução e paródia




A zombaria realizada através deste manifesto por Almada Negreiros, bem na tradição das cantigas de escárnio e maldizer da Idade Média portuguesa, tenta dar o recado de que a Literatura Portuguesa em 1916 é mais do que esta literatura representada pela geração de Júlio Dantas. Houve mudanças profundas na estética literária e os portugueses as desconheciam. Desde 1913, estava havendo uma renovação literária de fundo, com revistas literárias renovadoras, revistas de teatro, publicação de livros significativos como a "A Confissão de Lúcio" da autoria de Mário de Sá Carneiro. Fernando Pessoa já escrevia desde este tempo, através de seus heterônimos, poesia renovadora e em 1915 fora publicada a revista "Orpheu", de perfil inteiramente renovador, a nível nacional e europeu. Portugal teria que tomar consciência disto e não podia continuar escrevendo pela cartilha de Júlio Dantas. Este era o recado principal. O manifesto de Almada é de 1916. Negreiros achava que estava devagar a compreensão dos portugueses em relação ao que estava acontecendo em termos de renovação em Portugal.Almada resolve, por isso, bater pesado e firme. Escreve utilizando a mordacidade e a ironia devastadora como forma de apoucar, diminuir, destruir, desfazer, anarquizar e anular a imagem de Júlio Dantas. O efeito era prático. Haveria que tirar do pedestal uma figura que atrapalhava a divulgação e a penetração dos princípios sensacionistas de renovação modernista em Portugal. Em parte, momentaneamente, Almada conseguiu. Mas só momentaneamente. Por muitos e muitos anos, Júlio Dantas ainda dominou a cena portuguesa e depois de Sá-Carneiro(1916) e Fernando Pessoa(1935) terrem morrido, Almada pôde ainda ver nas décadas de 40,50 e 60 ser representada com sucesso e aplausos "A Ceia dos cardeais" de Júlio Dantas, que retomou seu prestígio na classe conservadora portuguesa até ao ano em que morreu, em 1962. Almada falece pouco depois, em 1970, assistindo e constatando isto, após ter realizado uma das obras mais sólidas e renovadoras que houve em Portugal, tanto em literatura que cultivou com destaque, quanto em pintura, de que foi mestre incomum. "












Ouça o Manifesto Anti-Dantas declamado pelo genial Mário Viegas: http://www.youtube.com/watch?v=CSRC6-XgSHo

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