05/04/2008

Arte que se lê: "História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar" de Luis Sepúlveda


É impossível não gostar de Luis Sepúlveda. Poderia ter escolhido outro título qualquer para representar aqui, porque desde "As Rosas de Atacama" a "Encontro de Amor Num País Em Guerra" são livros que a maioria dos leitores apreciam. Fico-me pela história do gato e da gaivota, que por ser a mais ternurenta de todas, não lhe resisto.



Leia um excerto:


"O gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios pela barriga acima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.

No preciso momento em que se rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o zumbido provocado por um objecto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.

Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas:

- Não foi uma aterragem muito elegante - miou.

- Desculpa. Não pude evitar - reconheceu a gaivota.

- Olha lá, tens um aspecto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que cheiras! - miou Zorbas.

- Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer. - grasnou a gaivota num queixume.

- Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque não voas até ao Jardim Zoológico? Não é longe daqui e há lá veterinários que te poderão ajudar - miou Zorbas.

- Não posso. Foi o meu voo final - grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.

- Não morras! Descansa um bocado e verás que recuperas. Tens fome? Trago-te um pouco da minha comida, mas não morras - pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.

Vencendo a repgnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além do mais, sabia horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.

- Olha, amiga, quero ajudar-te mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente - miou Zorbas preparando-se para subir ao telhado.

Ia a afastar-se na direcção do castanheiro quando ouviu a gaivota chamá-lo.

- Queres que deixe um pouco da minha comida? - sugeriu ele algo aliviado.

- Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir-te que me faças três promessas. Fazes? - grasnou ela, sacudindo desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr de pé.

Zorbas pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão lastimoso ninguém podia deixar de ser generoso.

- Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa. - miou ele compassivo.

- Não tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo. - grasnou ela abrindo os olhos.

- Prometo que não te como o ovo - repetiu Zorbas.

- Promete-me que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.

- Prometo que cuido dele até nascer a gaivotinha.

- E promete-me que a ensinas a voar - grasnou ela fitando o gato nos olhos.

Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar, como estava completamente louca.

- Prometo ensiná-la a voar. E agora descansa que vou em busca de auxílio - miou Zorbas trepando de um salto para o telhado.

Kengah olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a tinham acompanhado e, justamente ao exalar o último suspiro, um ovito branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo."



Conheça o autor:

Luis Sepúlveda é um escritor, realizador, jornalista e activista de nacionalidade chilena.

Nasceu em Ovalle, no Chile, em 4 de Outubro de 1949. Reside actualmente em Gijón, na Espanha, após viver entre Hamburgo e Paris.

Em 1969 vence o “Prémio Casa das Américas” pelo seu primeiro livro “Crónicas de Pedro Nadie”, e também uma bolsa de estudo de cinco anos, na Universidade Lomonosov de Moscovo. No entanto só ficaria cinco meses na capital soviética, pois foi expulso da Universidade por “atentado à moral proletária”, causado, segundo a versão oficial, por Luís Sepúlveda manter contactos com alguns dissidentes soviéticos.

De regresso ao Chile é expulso da Juventude Comunista, adere ao Partido Socialista Chileno e torna-se membro da guarda pessoal do presidente Salvador Allende. No golpe militar do dia 11 de Setembro de 1973, que levou ao poder o ditador general Augusto Pinochet, Luís Sepúlveda encontrava-se no Palácio de La Moneda a fazer guarda ao Presidente Allende. Membro activo da Unidade Popular chilena nos anos 70, teve de abandonar o país após o golpe militar de Pinochet. Viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Paraguai e Peru.

Viveu no Equador entre os índios Shuar, participando numa missão de estudo da UNESCO. Sepúlveda era, na altura, amigo de Chico Mendes, herói da defesa da Amazónia. Dedicou a Chico Mendes "O Velho que Lia Romances de Amor", o seu maior sucesso.

Perspicaz narrador de viagens e aventureiro nos confins do mundo, Sepúlveda concilia com sucesso o gosto pela descrição de lugares sugestivos e paisagens irreais com o desejo de contar histórias sobre o homem, através da sua experiência, dos seus sonhos, das suas esperanças.


fonte: wikipédia

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