03/06/2008

Arte que se pinta: "Abu Ghraib" de Botero


Botero é um pintor e escultor colombiano. Icónico. Famoso, impossível qualquer trabalho seu não ser reconhecido, mesmo por um leigo. Mesmo que só o conheçam pelas figuras "rechonchudas". Mas esse é só um primeiro olhar, muito ao de leve na sua obra. O que lá está é muito mais profundo.

Em 2006, Botero foi notícia pela sua colecção intitulada "Abu Ghraib". Esta consiste em 50 pinturas sobre as torturas infligidas a prisioneiros de guerra iraquianos pelos soldados americanos. O próprio, quando questionado sobre a similaridade do seu trabalho com Goya, respondeu que encontra muitas mais semelhanças com a "Guernica" de Picasso. Sobretudo, esta colecção surgiu a partir da necessidade de tirar do coração esta série de terríveis eventos, amplamente mediatizados.

Sempre gostei da obra de Botero, mas confesso que continuo a preferir as suas outras obras, as mais plácidas. As "rechonchudas" de aspecto mais simpático.


"Fernando Botero nasceu em Medellin, Colombia, a 19 de Abril de 1932. De jovem autodidacta, tornou-se o pintor mais famoso de toda a América Latina. E, como muitos artistas sul-americanos seus antecessores, teve de partir da sua terra natal para conhecer, primeiro o Velho Continente e, só depois, o conquistar. A sua obra possui perto de três mil pinturas e ainda mais de duzentas esculturas, assim como inúmeros desenhos e aguarelas. As suas primeiras obras exprimem o carácter expressionista da pintura, mas foi após anos de aprendizagem e de inúmeras viagens, que ele adquiriu o estilo pelo qual ficaria famoso: “as imagens que se tornaram símbolos da cultura crioula moderna da América Latina”. O núcleo do seu trabalho denota uma experiência existencial da sua origem e cultura, que é, simultaneamente, de âmbito universal. Botero salientava que isto só era possível “porque o artista é universal apenas quando está fortemente enraizado na própria comunidade onde nasceu”.


Em Março de 1955, Botero regressa ao seu país e as suas obras, realizadas aquando da sua estadia na Itália, foram acolhidas pelo público como “demasiado clássicas”. Então, partiu para o México, onde procurava encontrar um certo “elo perdido”. O México era na altura o país predominante da América Latina do ponto de vista cultural, onde as civilizações pré-colombianas se tinham fundido com a cultura europeia durante o período colonial, originando uma tradição nacional distinta, com uma arquitectura, pintura e escultura admiráveis. Nenhum outro país do continente americano tinha uma arte popular tão rica e variada e esta, em simultâneo com os trabalhos dos mestres, foi sempre uma fonte de inspiração para Botero.


Depois de passar pelos Estados Unidos em 1957, Botero regressou a Bogotá, como o mais importante artista da nova geração, trazendo na sua bagagem a vanguarda nova-iorquina e os modernistas mexicanos, ao lado da arte renascentista e do Barroco do Novo Mundo. A sua pintura figurativa desenvolveu o seu estilo inconfundível: pintava imagens de raparigas, séries completas de meias figuras voluptuosas, “que nada ficavam a dever quer aos ídolos dos Maias e Astecas, quer à misteriosa Mona Lisa”. Pintou também, imagens narrativas com cenas do quotidiano e ainda começou a pintar paráfrases de pinturas famosas expostas em museus europeus, sendo esta hoje uma componente importante da sua obra: “Estes temas são importantes para mim à medida que se tornam populares e mais ou menos pertencentes a todos. Só então posso fazer algo diferente com elas. Por vezes desejo apenas compreender uma pintura de forma mais profunda e completa, a sua técnica e o espírito que a conduz” (Botero).


Assim, Botero queria utilizar as paráfrases para mostrar que o aspecto mais importante de uma pintura não é o tema, mas antes o estilo. Com o tempo, as figuras e objectos de Botero tornaram-se mais esculturais, os volumes e as formas aumentaram. Botero pinta ainda uma longa série de pinturas sobre motivos religiosos, um tema pouco usual segundo os padrões do século XX.


O seu formato de pintura pouco conhecido e acentuadamente horizontal, remonta à predella das primeiras obras de altar italianas; gosta de pintar imagens de clérigos e dignitários da Igreja, juntando a sua paixão pela pintura do século XV, à sua época, o século XX – denotando assim uma realidade específica da sua cultura: a importância da Igreja como instituição e como portadora de identidade da sua região. No entanto, se de início estas imagens foram interpretadas como sendo uma crítica dessa instituição ancestral, verificou-se, com o tempo, que Botero seria mais um pintor do “amor” do que da “crítica”, pois as suas pinturas seriam apenas “leves sorrisos de perdão pelo carácter inofensivo da sua discriminação”.


Os seus mais belos trabalhos correspondem à época mais difícil da sua vida, pois a partir de 1960 decidiu residir em Nova Iorque para prosseguir a sua carreira de artista. Este período de solidão, de rejeição, de críticas arrasadoras foi fundamental para Botero encontrar o seu estilo figurativo. Saliente-se as chamadas Meninas: imagens de apenas uma rapariga, sempre numa tela de grandes proporções, a sua cabeça enorme, de frente ou de perfil, enche quase por completo o quadro, com tão pouco espaço entre si e a extremidade. São as pinceladas livres que conferem vida a estas criaturas imperturbáveis, altamente esculturais e, na sua falta de emoção, semelhantes a bonecas. Nunca mais abandonaria este tipo de figura descontraída e serena. Botero rejeitava, por princípio, o individualismo, a emoção e a inquietude, razão pela qual nunca trabalhava a partir de elementos vivos ou com o objecto na sua frente, mas apenas a partir da memória. A pintura era, segundo Botero, “um mundo muito à parte. Uma natureza-morta não é uma gravura botânica. O assunto não é a fruta, mas o quadro. O mesmo se aplica a homens e mulheres”.


Pintou ainda uma série de criaturas gigantescas, mas amistosas, decoradas com contornos suaves e redondos. “Peles suaves, sensuais, aveludadas, cobrem corpos amplos onde, enterradas bem fundo nas carnes, as pequenas almas, sempre bem dispostas, parecem dormir”; e à pergunta se as suas figuras tinham almas leves, Botero responderia mais tarde: “Elas nunca quiseram ter almas”.


“Sempre procurei o sublime e venerei Velázquez, porque ele evita qualquer comentário emocional. Admiro esta reserva, esta dignidade”. (Botero)


A pintura de Botero é intemporal: nada nos lembra os anos 60, a frivolidade do mundo dos produtos e do consumo, como na pintura Pop Art. Nenhuma das suas “meninas” usava os cabelos ou os vestidos assim. Estas são pinturas retiradas da memória, é a sua visão artística e o mesmo se aplica as outras pinturas de índole clerical ou outras baseadas nas famosas pinturas dos grandes mestres. Estas imagens caracterizam-se por uma curiosa inocência: “a sua linguagem formal faz lembrar o provincianismo hispano-americano e crioulo com a sua poesia inofensiva”; refira-se a obra Madona e o Menino, e o facto de como esta deverá ter tido um efeito chocante no contexto da Pop Art nova-iorquina dos anos 60. Madona em forma de sino e com o menino ao colo, está sentada sobre uma macieira e por debaixo do seu hábito surge uma cobra, mas para além destes elementos, Botero acrescenta ainda tudo o que tradicionalmente a iconografia atribui a imagens de Madona: o menino, as maças, uma auréola.


“Não, eu não pinto pessoas gordas”
Esta era a resposta recorrente de Botero à pergunta: porque pinta Botero pessoas gordas? O facto é que as figuras são cheias, redondas, ou mesmo corpulentas, mas este exagero apenas reflecte uma preocupação estética e, sobretudo, possui uma função estilística. Botero seria, antes de mais, um pintor figurativo e, mesmo se, as suas imagens são dirigidas pela realidade, estas não a transmitem. Tudo nos seus quadros é volumoso e, a priori, não se preocupa em pintar coisas especiais, mas antes,em utilizar a transformação ou deformação para tornar a realidade em arte. O seu ideal estético centraliza-se em formas e volumes, um estilo que lhe permite dar expressão a estas visões.


Botero gosta de sublinhar que a deformação na arte tem uma longa tradição histórica – e que seria a arte senão deformação da realidade originada por uma inquietude estética num sentido preponderante de tarefa estilística? Giotto, Rafael, El Greco, Rubens, Picasso e tantos outros deformaram a realidade para formular algo diferente. Assim, para estes, como para Botero, o exagero constante e abrangente torna a deformação uma regra, transformando-a depois em estilo. Porém, a deformação sem um objectivo superior seria uma caricatura ou mesmo uma monstruosidade, o que não acontece em Botero. A sua deformação manifesta sempre um desejo de acentuar a sensualidade da imagem.


“É importante saber de onde provém o prazer de contemplar um quadro. Para mim, é a alegria de viver combinada com a sensualidade das formas. É por isso que o meu problema é criar sensualidade através da forma.”
Alguns artistas expressam nas suas obras os problemas com o mundo ou as suas angústias da vida, o que não era o caso dos antigos mestres italianos do século XV, nem é o de Botero. As imagens deste estão despidas de rudeza, maldade e extremismo, assim como o amor deixa de ser erótico. O volume exagerado parece que transporta o mundo e a vida numa realidade “flutuante” – seria uma afirmação da vida superficial e apenas o sofrimento verdadeiramente profundo, como havia sugerido o escritor peruano Mário Vargas Llosa? A obra de Botero desenrolar-se-ia na orla deste abismo, mas nunca mergulharia nele; e seria também o que o distinguiria dos chamados pintores naïfs.Na América Latina genuína, a “gordura” é associada ao bom viver, à saúde, à alegria de viver, e as pessoas gordas, à boa disposição, aos prazeres dos sentidos. Botero salienta certamente este continente de festa e de cor, da “siesta” e da boa comida; mas também existe uma correspondência mais profunda associada ao espírito de um povo alimentado por mitos e lendas, que adora símbolos e alegorias, que possui qualidades criativas do exagero e do excesso. Nas suas igrejas, por exemplo, podemos ver o esplendor, o luxuoso, o elaborado nos seus altares, mas também no seu artesanato e na sua pintura.



Nas suas pinturas não existem sombras, porque elas “sujam as cores”; esta ausência é uma grande preocupação ligada à ideia de beleza. A luz provém do interior e a plasticidade das suas imagens é criada através da cor. O objectivo é sempre criar superfícies em que a cor possa exprimir-se a si própria. A cor é fundamental, diz Botero, “pois dá luz à pintura. A imagem só alcançará a perfeição quando a questão da cor tiver sido resolvida”.


Bibliografia: Hanstein, Mariana,Botero, Taschen, Colónia, 2004

1 comentário:

Meus Netos...Minha Fortuna!!! disse...

Querida Ana
Obrigada pela tua visitinha e pelas doces palavras.
És mesmo uma querida!
Estive a ler o teu post, como sempre, adorei, e deixo-te os meus parabens!
Bom fim de semana.
Um grande beijinho
Vóvó Cassilda

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